¨ eu descartável..


Foi numa mesa de um café que muita coisa mudou para ele. Não que as substâncias provenientes do café proporcionaram mudanças de pensamentos naqueles que as ingeriram, mas coincidentemente, tirou algumas conclusões naquele canto mesa-de-um-café.

Fábio sempre foi um pouco porra-louca, adorava os excessos, a forma externada do seu espírito de bon vivant, mas, na verdade, em vez de aproveitar de tudo um pouco, era de tudo um muito, dez muitos. Sua casa se tornou um retiro para os excessos quando descobriu a sensação anestésica de se viver, quando tomou o primeiro porre e achou demais subverter a rotina em prazer de uma forma tão fácil e rápida. Em pouco tempo - voltemos a casa -, os seus tapetes, e camas, e pensamentos, ficaram sujos de cinzas, cigarros, pileques e esperma, sujos do que é descartado após a filtração do prazer.

Tinha muitos amigos. A maioria descartável também. Conhecia gente pra caralho, fazia a social como um bon vivant e, por conta disso, estava em todas as festas, seja por importância afetiva, ou talvez por conseguir tornar um lugar mais louco, mais interativo e popular. Era popular, cheio de amigos pode-pular.

Pensava algumas vezes nos tempos em que viveu na fazenda do avô, e nos dias eternos em que tentava resolver, sozinho, as perguntas sem respostas quanto aos seus pais, nunca mais vistos desde os cinco anos de idade do garoto. Desistiu de superar a tristeza, superando as investigações, mas continuou triste, sublimando, na verdade, o significado da palavra superação. Procurou um caminho menos árduo. Foi para a cidade fincar outras raízes, freqüentou boate gay, sambão de terreiro, festa high society, praia de naturismo, missa de domingo, procurou raízes, sim, feito um louco em busca de sentido.

Conheceu Marina numa fila de livraria, ela comprava para presente um filme pelo qual ele era apaixonado. Conversaram pouco tempo sobre filmes e diretores, trocaram e-mails com a intenção de depois trocarem “figurinhas”, informações em comum sobre cinema, na verdade. Foi além. “Na praça central”, combinaram, “leva o filme que te pedi”, “leva pra mim aquela receita de café mentolado que você me falou que sabia fazer”, “vem aqui em casa, faço pra você”, “tudo bem, então”. No domingo Fábio foi visitá-la. Marina estava com um apartamento temporário, já que estava na cidade apenas para fazer algumas pesquisas para o mestrado que estava concluindo.

Conversaram a tarde inteira, prolongaram para a noitinha, como se já houvessem construído uma relação de confiança. Estranhou-se depois o surgimento de tanto desejo para as confidências, como se fosse necessário para os dois o conhecimento da vida de um e do outro. Tomou o café. Marina contou dos sonhos que teve durante toda a vida com uma velha de cabelos brancos que sempre caminhava na beira de um mar, arrastando um pedaço de madeira e fazendo movimentos circulares. Algumas vezes a senhora surgia no sonho um pouco desfigurada, e o mar um tanto revolto, às vezes ela aparecia em extrema conformidade com o tempo, com o movimento lógico de causa e conseqüência do mar. Disse que talvez sonhasse com a velhinha por nunca ter construído uma relação com seus parentes mais velhos, já que morreram antes do próprio nascimento. Bem ao contrário de Fábio, que viveu com o avô, mas nunca conheceu o pai. Nem nunca teve sonhos que expressassem alguma ausência. Marina falou sobre o seu primeiro beijo, com uma árvore bem molhadinha do jardim da sua casa, Fábio falou da prostituta com a qual se relacionou e depois não pagou, por já ter gasto todo o dinheiro com bebidas e cigarros. Marina sorriu e deixou à mostra os dentes brancos como leite. Olhou para ele como se visse nos outros olhos os vestígios de um vácuo de sentimentos.

Nunca mais se encontraram. Fábio tentou até telefoná-la algumas vezes para se despedir, para dizer “que bom que te conheci”, ou então, “que ruim que te conheci, vou ter de perder mais outro alguém que me fez tão bem”, mas o sinal do telefone era sempre de número inexistente. O que faria, agora¿ Voltou às ocupações diárias. Recebeu a proposta de trabalhar em uma empresa de telecomunicações (vai ver que a efervescência social proporcionou, pelo menos, algumas oportunidades), mas continuou a freqüentar os mesmos ambientes com as mesmas pessoas. Esqueceu, sim, daquela figura tão estranha, mas tão enovelada de aconchego que conheceu.

Certo dia foi para a livraria comprar uns livros de poesia erótica que já haviam lhe contado. Sentou na cafeteria. Pediu um café mentolado. Lembrou-se imediatamente de Marina, do cheiro da casa dela de armário antigo, do dia em que se encontraram e tomaram o café. Nunca sentiu tão intensamente o cheiro da menta naquele dia. Fábio sentiu o coração apertar, o medo de encarar a si próprio após tanto tempo de fugas e afogamentos alcoólicos. Lembrou dos amigos que teve, dos prazeres que sentiu, da decisão que tomou ao morar no centro urbano com a intenção de encontrar raízes, encontrando, apenas, galhos secos. Lembrou que vivia em um tempo de renovação, produção e descarte, de inundações de vazios.